
A cada dia, a política brasileira nos presenteia com uma dose de surrealismo que mistura ignorância com audácia, e com um ingrediente especial: o cinismo de quem tem poder e se acha acima das leis. No último artigo de Ricardo Noblat, publicado no Metrópoles em 19 de abril de 2025, a tentativa de um novo golpe — aquele que, em teoria, teria sido orquestrado por Bolsonaro em dezembro de 2022 e em 8 de janeiro de 2023 — é relembrada, mas com uma perspectiva muito mais amargurada do que talvez merecesse. Noblat parece não perceber que, ao invocar Getúlio Vargas e suas vicissitudes políticas de 75 anos atrás, está, na verdade, apontando para um passado que, apesar de suas dramáticas reviravoltas, não é tão distante assim do atual cenário. Um cenário em que a democracia brasileira tem sido testada incansavelmente.
O autor se refere à “boa saúde e vida longa” que Bolsonaro deveria desejar, mas “atrás das grades”, como uma forma de punição para seus supostos crimes. É uma visão maniqueísta que talvez cative aqueles que ainda creem que tudo que acontece no Brasil é parte de uma narrativa simplista: uma luta do bem contra o mal, onde as partes nunca se misturam, e onde a linha tênue entre a verdade e o pragmatismo político é ignorada. No entanto, será que essa visão não está um tanto fora de contexto? Afinal, Bolsonaro, apesar de ter cometido vários erros ao longo de seu governo, não é o único responsável por algumas das piores crises do Brasil. A “boa saúde” de nossa democracia está mais vulnerável do que o jornalista parece entender.
O que Ricardo Noblat não leva em consideração é o impacto de suas palavras e o peso da responsabilidade que um ex-presidente carrega. Sim, Bolsonaro tem erros a pagar. E sim, ele deve responder por seus atos dentro da legalidade. Contudo, não podemos ignorar que, por mais que seu governo tenha sido permeado por polêmicas, a instabilidade política no Brasil não começou em 2018 com a ascensão de Bolsonaro. Ele é, no final das contas, um reflexo do que é o Brasil hoje. Um país dividido, um país onde as instituições ainda não aprenderam a funcionar de maneira coesa, e onde as figuras políticas continuam a usar a democracia como uma desculpa para fazer jogo sujo.
Essa divisão e polarização se acentuaram, entre outros momentos, quando se discutiu o Orçamento Secreto. O Congresso, que hoje é o “mais poderoso da história”, segundo Noblat, não é um fenômeno isolado de Bolsonaro. Ele é a continuação de práticas históricas que se perpetuam há décadas no país. E, mais uma vez, não importa o nome do presidente da vez — a classe política brasileira, de maneira geral, sempre se utiliza da política como um jogo de poder, sem se preocupar com os efeitos disso na população.
Portanto, em vez de continuar a propagar um discurso de “mimimi”, como Noblat sugere, seria mais sábio refletir sobre o papel de todos nesse cenário. Por que o Brasil chegou até aqui? O que nos trouxe a este ponto de fragilidade institucional? Por que tantos ainda acreditam que uma única pessoa seja responsável por toda essa bagunça?
Longe de defender Bolsonaro, a questão que se coloca aqui é mais ampla e mais estratégica. Se o que queremos é fortalecer a democracia, precisamos, antes de mais nada, entender que o processo não é binário. Não se trata apenas de uma luta contra um “golpista” ou contra uma narrativa de direita ou esquerda. A luta pela democracia deve ser mais do que um slogan: precisa ser uma ação concreta que vise, entre outras coisas, a revisão das instituições, a ampliação da participação popular e, acima de tudo, a responsabilização de todos os envolvidos — não apenas dos inimigos políticos da vez.
No final das contas, a história de Bolsonaro — como a de qualquer líder político — é muito mais do que o simples enredo de um homem contra o sistema. Ela faz parte de um ciclo de erros e acertos, onde ele, como qualquer outro político, fez escolhas e tomou decisões que refletiram a sociedade na qual vivemos. A punição, caso venha, deve ser justa, sem dúvida. Mas também deve ser uma oportunidade para que o Brasil repense o seu futuro político e crie um novo pacto social, no qual a democracia não seja apenas uma palavra vazia, mas um valor respeitado e defendido por todos.
Com informações Metrópoles