
Não há nada mais perigoso para uma democracia do que a deturpação silenciosa dos seus papéis institucionais. E quando essa subversão parte de alguém que, constitucionalmente, não possui mandato algum, mas que ocupa os palácios como se tivesse recebido milhões de votos nas urnas, a coisa assume contornos preocupantes. É o caso da atual primeira-dama do Brasil, Rosângela “Janja” da Silva, que mais uma vez protagoniza um episódio revelador sobre os riscos de um populismo de bastidores, onde a vaidade pessoal tenta se vestir de autoridade pública.
A recente fala de Octavio Guedes, jornalista da GloboNews — alguém, diga-se de passagem, bem longe da ala conservadora — foi de uma lucidez rara em tempos de cegueira institucional. Ao comentar o comportamento de Janja, ele expôs o que muitos brasileiros vêm percebendo: há um esforço deliberado da primeira-dama para ampliar seus próprios limites institucionais, mascarando críticas legítimas como se fossem tentativas de silenciamento pessoal.
É aquela velha tática: se você critica, está sendo opressor; se você questiona, está querendo calar uma mulher; se você aponta o excesso, está revelando misoginia. Uma retórica batida, mas infelizmente ainda eficaz para desviar o debate do que realmente importa: os limites entre o privado e o público dentro da estrutura do Estado.
"Janja jogou para um lado interessante para ela: qualquer crítica que fizerem a mim é porque querem me calar. Nem só ninguém deve calar uma primeira-dama como não devem ser calados os críticos que apontam que a primeira-dama tem um papel institucional, seja ela quem for, seja a… pic.twitter.com/NACx9126SG
— GloboNews (@GloboNews) May 19, 2025
A primeira-dama, como bem lembrou Guedes, não tem qualquer representação política, e isso não é uma falha da democracia, mas sim uma proteção dela. O Estado brasileiro não é uma monarquia. O cargo de primeira-dama não é título nobiliárquico, nem deveria se comportar como tal. Não é por ter casado com o presidente que se adquire poder de fala institucional, tampouco autoridade para representar o país em pautas de Estado. Isso não é machismo — é democracia constitucional na sua essência.
Ao tentar se colocar acima da crítica, Janja comete um erro estratégico e ético: transforma a crítica ao abuso de papel em uma guerra de gênero. E isso é covarde. Porque ao fazê-lo, ela coloca um escudo impenetrável em torno de si mesma, alimentando a ideia de que apenas por ser mulher — e esposa do presidente — estaria imune ao debate público. Mas não está. E não deve estar.
O que se vê, na verdade, é a tentativa de criar um protagonismo institucional artificial. Janja aparece em reuniões oficiais, se apresenta em encontros diplomáticos, participa de decisões de governo, opina sobre temas sensíveis como políticas públicas, comunicação oficial, combate à fome, meio ambiente. Tudo isso sem ter passado por uma eleição, sem ter recebido um único voto, sem prestar contas a ninguém. Isso não é ativismo de primeira-dama — isso é usurpação simbólica do poder institucional.
E para piorar, quando surgem as críticas, o discurso ensaiado vem à tona: “Querem me calar”. Não, senhora. O que o Brasil quer é transparência institucional e respeito à hierarquia constitucional. Queremos que os cargos públicos sejam ocupados por quem tem legitimidade popular para exercê-los. Que as decisões do Estado não fiquem ao sabor das emoções palacianas ou da vaidade de quem nunca passou pelo crivo das urnas.
A estratégia é esperta, porém perigosa. Se qualquer crítica à atuação pública de uma primeira-dama for tratada como tentativa de opressão, então cria-se um espaço intocável dentro do debate político, onde não há mais argumentação possível, apenas reverência. E isso é tudo o que o populismo adora: transformar a figura pessoal em entidade acima do bem e do mal.
E aqui é preciso fazer um paralelo com a história. Nenhuma democracia sólida permite que familiares de presidentes exerçam funções políticas sem mandato. Quando isso acontece, vemos os desvios tomarem forma: nepotismo, autoritarismo, manipulação de bastidores. Não é coincidência que nos países onde há ditaduras disfarçadas de democracias — como Venezuela, Nicarágua, Cuba — os cônjuges dos chefes de Estado possuem enorme influência nos rumos do governo. O Brasil está preparado para esse modelo? A resposta, evidentemente, é não.
A função da primeira-dama — que não é cargo público, diga-se — é de representação simbólica, apoio social, incentivo a causas humanitárias. E quando muito, comedida. Mas o que estamos presenciando é uma atuação desmedida, institucionalmente invasiva e politicamente militante, como se houvesse uma lacuna de autoridade que a atual esposa do presidente precisasse preencher.
Ora, se Janja deseja opinar sobre assuntos de Estado, representar o Brasil em fóruns internacionais, propor projetos de lei, discutir políticas públicas com ministros e chefes de governo — o caminho está claro: que se candidate. Que enfrente as urnas, que se exponha ao voto, que sinta o peso da soberania popular. E aí sim, com a devida legitimidade política, que ocupe o espaço que julga merecer.
"Eu quero dizer que eu, como mulher, não admito que alguém me dirija, dizendo que eu tenho que ficar calada. Eu não me calarei quando for para proteger a vida das nossas crianças e dos nossos adolescentes", diz Janja ao defender sua intromissão em reunião com o presidente chinês,… pic.twitter.com/4eKPW3A3wP
— O Antagonista (@o_antagonista) May 19, 2025
Mas enquanto isso não acontecer, seu papel precisa respeitar os limites que a própria democracia impõe. E todo cidadão tem o direito — mais que isso, o dever — de questionar quando esses limites são ultrapassados. Porque quando alguém sem mandato começa a decidir, opinar, interferir ou influenciar decisões de governo, isso não é mais apoio — é ingerência política.
A fala de Octavio Guedes, por mais óbvia que pareça, incomodou exatamente porque escancarou o desconforto de parte da imprensa com o crescimento descontrolado de Janja no cenário institucional. E incomodou porque há muito tempo esse assunto tem sido tratado com um silêncio cúmplice, motivado por uma mistura de temor midiático, simpatia ideológica e blindagem partidária. Mas alguém precisava dizer: primeira-dama não é chefe de Estado. Nem aqui, nem em nenhum lugar do mundo democrático.
É curioso perceber como o discurso progressista, que tanto defende a impessoalidade das instituições, se cala quando a informalidade do poder é exercida por alguém “do seu lado”. Quando a esposa do presidente anterior, Michelle Bolsonaro, falava sobre Bíblia e família, o mundo vinha abaixo. Acusavam-na de fundamentalismo religioso, de ultrapassar os limites do seu papel, de ser instrumento de manipulação política. Mas com Janja, tudo é tolerável: sua atuação é “engajada”, suas falas são “progressistas”, suas ideias são “de inclusão”. A hipocrisia é escancarada.
O conservadorismo, ao contrário, defende princípios que não mudam conforme a conveniência ideológica. O conservador entende que papéis institucionais existem para proteger a democracia — e não para engessar a sociedade. Defende que a esposa de um presidente pode, sim, ter protagonismo social — desde que respeite os limites constitucionais. Que pode, sim, ser voz ativa em causas do coração — desde que não atropele os canais formais da política.
É preciso lembrar: quem não é eleito, não pode representar o povo oficialmente. E quem quer representar, deve se submeter à soberania do voto. Não é uma questão de gênero, de esquerda ou direita, de simpatia ou antipatia. É uma questão de ética republicana. É o básico. É o mínimo.
O Brasil não pode cair na armadilha de transformar cônjuges de presidentes em figuras intocáveis, nem pode aceitar que se criem cargos simbólicos com influência prática. Se hoje permitimos que uma primeira-dama tome parte de decisões públicas, amanhã será o filho, o primo, o compadre. E quando isso acontecer, a institucionalidade brasileira terá sido corrompida não pela força, mas pela omissão.
Portanto, é hora de dizer em alto e bom som: Janja não representa o Brasil. Ela representa a si mesma. Suas causas não são causas de Estado, mas de militância pessoal. Seu ativismo não é institucional, é particular. E seu lugar, por mais que doa nos ouvidos da esquerda militante, não é nas reuniões de governo, mas na retaguarda do apoio social — como todas as primeiras-damas que respeitam os princípios da democracia constitucional.
Se há uma lição a tirar de tudo isso é que o Brasil precisa voltar a ter clareza sobre os limites do poder. Precisamos, mais do que nunca, de instituições fortes, transparentes e respeitadas. Precisamos parar de endeusar pessoas e voltar a confiar nos processos. E precisamos — urgentemente — entender que respeitar os papéis institucionais não é silenciar ninguém, mas garantir que todos sejam ouvidos nos seus devidos lugares.
Se Janja quer mais, que lute por isso nas urnas. Mas enquanto for apenas esposa do presidente, não é com críticas que ela deve se preocupar — é com os limites da sua atuação. Porque se há algo que a história nos ensinou, é que quando os bastidores do poder se tornam palco principal, a democracia vira coadjuvante.