
A cena parecia ter sido roteirizada com todos os elementos de um espetáculo grandioso: bandeiras tremulando, oficiais perfilados, uniformes reluzentes e o próprio ditador, Kim Jong-un, em pé diante de um microfone, com o semblante satisfeito de quem apresenta ao mundo um “avanço naval histórico”. O cenário era a cidade portuária de Chongjin, no leste da Coreia do Norte, e o evento era o lançamento de um novo destróier de 5.000 toneladas — um suposto marco militar para o regime mais fechado e paranoico do planeta.
Mas a realidade, como sempre, tratou de rasgar a cortina da encenação. O que se seguiu foi o oposto do que Kim esperava: um acidente “sério”, nas palavras do próprio ditador, que fez a embarcação tombar após a base do casco ser esmagada. O estrago, segundo a cobertura corajosa e detalhada da jornalista Kelly Ng, da BBC News, não foi apenas material. Para Kim, foi uma ofensa direta à “dignidade e ao orgulho da nação” — e isso, num regime onde a imagem do líder é sacralizada, é praticamente uma blasfêmia de proporções teológicas.
O tom furioso de Kim Jong-un diante das câmeras não escondeu sua humilhação. Em vez de exaltar os méritos da engenharia nacional, o líder comunista vociferou contra os “erros irresponsáveis” e a “empiricidade anticientífica” dos responsáveis pela construção. Ordenou, com a autoridade brutal de um déspota ferido, que os envolvidos sejam responsabilizados — e, no contexto norte-coreano, isso pode significar muito mais que uma demissão ou multa. Pode significar prisão, trabalhos forçados ou algo ainda pior, como bem sabemos.
Em um país onde se pode ser encarcerado por assistir a um DVD sul-coreano ou por tentar escapar da miséria e da repressão, o que esperar dos técnicos e engenheiros que falharam em um projeto exposto diante do próprio líder? Que “punições” lhes aguardam nas profundezas do sistema prisional norte-coreano, onde direitos humanos são tão inexistentes quanto a liberdade de expressão? A pergunta é retórica — mas não menos urgente.
Curiosamente, o regime norte-coreano não costuma reconhecer falhas internas com tanta clareza. Em geral, desastres são encobertos, censurados ou reinterpretados com narrativas fantasiosas. O próprio Kim, por vezes, opta pelo silêncio ou pela distração midiática. Contudo, dessa vez, a situação foi publicamente exposta. O “acidente” com o destróier foi revelado pela agência estatal, o que pode sinalizar um movimento interno mais profundo: talvez uma tentativa de reorganização dentro das Forças Armadas ou uma crise de confiança entre os principais setores do regime.
A BBC News relembrou que não é a primeira vez que isso acontece. Em novembro de 2024, a explosão de um satélite militar em pleno ar foi qualificada como um “fracasso gravíssimo”, com os responsáveis duramente criticados. Em agosto de 2023, outro lançamento fracassado foi atribuído a um erro no sistema de ejeção de emergência. Ou seja, a retórica marcial do regime parece cada vez mais afastada da realidade técnica que ostenta. A propaganda grita vitória, mas os fatos sussurram derrota.
E isso não é um detalhe irrelevante. A imagem que Kim Jong-un cultiva — dentro e fora da Coreia do Norte — é a de um líder invulnerável, herdeiro de uma dinastia quase divina, com total controle sobre todos os aspectos da nação. Um episódio como esse mina diretamente essa narrativa. Revela a fragilidade do aparato estatal, a precariedade das tecnologias bélicas e, principalmente, a incompetência gerada por um sistema onde dizer a verdade pode custar a vida. Onde está a inovação quando a crítica é punida com o silêncio eterno? Onde está o avanço quando o erro é tratado como traição?
Esse evento também escancara uma tensão geopolítica latente. A Coreia do Norte havia anunciado, semanas antes, a construção de um destróier “revolucionário”, capaz de transportar mais de 70 mísseis. A nova embarcação seria a face visível do projeto de modernização naval, uma tentativa de compensar, pelo mar, sua inferioridade tecnológica em terra e nos céus. Com os Estados Unidos e a Coreia do Sul firmando alianças cada vez mais estratégicas, e com o Japão rearmando suas forças, Kim precisava desesperadamente mostrar força. Mas agora, o que ele mostrou ao mundo foi um navio tombado e um ego afundado junto com ele.
Não se trata apenas de propaganda falida. Trata-se de um risco concreto. Quando um ditador é humilhado em público, e ainda mais dentro de sua própria bolha de adoração, o impulso natural é o da retaliação. A história mostra que líderes autocráticos feridos tendem a reagir com atos extremos. Lançamentos de mísseis, provocações militares, ameaças nucleares — tudo isso pode ser colocado em prática como cortina de fumaça para encobrir a vergonha interna. A tragédia técnica de um destróier afundado pode ser o estopim de uma crise internacional.
Para os leitores de Conservadores Online, isso é um alerta duplo. Primeiro, para compreender como regimes totalitários, mesmo quando frágeis internamente, continuam a representar ameaças concretas à estabilidade mundial. Segundo, para reconhecer como a falta de liberdade, a censura e o culto à personalidade produzem ineficiência, medo e fracasso. A Coreia do Norte não sofre apenas porque está isolada — ela sofre porque está aprisionada numa ideologia de controle absoluto, onde o erro técnico vira ofensa política, e a incompetência se transforma em pecado contra o Estado.
A jornalista Kelly Ng, da BBC News, nos fornece um relato raro e valioso: uma fresta de realidade em um dos regimes mais fechados do planeta. O texto dela, embora factual e sóbrio, revela uma tragédia maior: não apenas a de um navio que tombou, mas de um povo inteiro que vive sob o peso de um regime que não admite falhas, não tolera críticas e transforma cada erro em uma nova forma de opressão.
Enquanto isso, Kim se prepara para o próximo encontro do Partido, marcado para junho. Lá, segundo os informes, os “culpados” serão julgados e punidos. A pergunta que fica é: haverá alguma lição verdadeira tirada disso? Ou será mais uma oportunidade para reforçar o medo, consolidar o poder e silenciar qualquer voz que ouse questionar a infalibilidade do “grande líder”?
A resposta parece óbvia. E é justamente por isso que o Ocidente precisa manter os olhos bem abertos. Não para rir do desastre técnico de um destróier afundado, mas para compreender que um regime que não aceita críticas, não tolera erros e pune a incompetência com brutalidade, inevitavelmente afunda — mais cedo ou mais tarde — em sua própria arrogância.
A Coreia do Norte, com seus segredos, seus cultos e suas armas, continua sendo uma caixa de Pandora prestes a se abrir. E quando o faz, raramente o mundo escapa ileso.
Com informações BBC