
Prepare-se. Sente-se, respire fundo, porque o Brasil acaba de ser agraciado com mais uma revelação divina — não do tipo que desce do céu em forma de profecia bíblica, mas daquele que brota direto do palanque, entonação de paladino da humildade e a pretensão de quem acredita, com convicção messiânica, que é o protagonista da história da humanidade.
Na última quarta-feira, Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido internacionalmente como o “homem mais honesto do Brasil” (segundo ele mesmo), afirmou, durante a cerimônia de entrega do 1º Trecho do Ramal do Apodi, na Paraíba, que “Deus deixou o sertão sem água porque sabia que ele seria presidente e levaria o recurso para a região.” Sim. Você não leu errado. O Criador dos céus e da terra teria estrategicamente mantido o semiárido nordestino seco por séculos só para, um dia, permitir que o salvador de nove dedos ocupasse o Palácio do Planalto.
É claro que essa pérola não poderia vir de outro senão do próprio Lula, o homem que já se comparou a Jesus Cristo, Mandela, Moisés, Getúlio Vargas, Tiradentes e, agora, parece se colocar na própria escritura divina como personagem central de um plano espiritual de redenção nacional.
A jornalista Camila Abrão, da Gazeta do Povo, registrou com precisão jornalística e sem ironias (que deixamos por conta da presente crônica) o momento em que Lula afirmou que, após 179 anos de promessas sobre a transposição do Rio São Francisco, ele foi o único capaz de realizá-la. Porque, claro, nenhum outro presidente teve a sabedoria celestial ou a humildade de entender o plano divino.
A narrativa é sedutora: o sertão sem água não seria fruto do descaso político, da incompetência administrativa de décadas, nem da roubalheira institucionalizada que desvia recursos de obras essenciais. Não. A seca nordestina foi parte do plano de Deus — e só poderia ser vencida no tempo certo, o tempo de Lula, o escolhido, o predestinado, o iluminado pela labirintite reveladora.
Sim, o próprio disse ter passado “uma hora e meia dentro de uma máquina” para investigar se sua cabeça estava com problemas após sentir tontura. Diagnóstico? Labirintite. Aparentemente, não foi diagnosticado excesso de delírio, nem síndrome de grandeza. Perdeu-se uma ótima oportunidade médica.
E como todo bom roteiro de campanha — ops, evento institucional —, Lula aproveitou a deixa para transformar o palanque em palácio e fazer promessas com o dinheiro dos outros. Anunciou crédito para reforma de casas, banheiro novo, quartinho pro neto, garagem para o carrinho, moto para entregadores, gás mais barato para os pobres, luz grátis para os vulneráveis… um verdadeiro combo promocional de bondades. Só não explicou de onde virá o dinheiro. Mas detalhes técnicos são para mortais, não para ungidos.
O presidente ainda afirmou que, depois dele e de Getúlio Vargas, ninguém mais se importou com a inclusão social no Brasil. “Depois de Getúlio Vargas, somente eu trouxe inclusão social neste país.” Ou seja, Fernando Henrique, Itamar, Sarney, Collor, e — Deus me livre — Bolsonaro, seriam apenas figuras decorativas numa linha do tempo onde só o barbudo brilhou. Até mesmo a Constituição de 1988, chamada de “Cidadã”, vira coadjuvante frente ao protagonismo de um operário convertido em semideus eleitoral.
Se a população carente do Brasil precisasse de um lembrete de como funciona o ciclo do populismo tropical, bastava assistir àquele discurso. Não é apenas a velha tática do “pai dos pobres” — é a reinvenção constante da própria imagem como salvador eterno da pátria, mesmo depois de mais de 14 anos no poder e da criação de uma série de programas assistencialistas que não erradicaram a pobreza, mas certamente garantiram uma sólida base eleitoral.
Mas convenhamos, é de uma genialidade quase cínica afirmar que a miséria foi mantida como projeto divino apenas para que um partido político pudesse capitalizá-la. É o tipo de argumento que mistura fé com fanatismo, e política com mitologia.
Lula transformou a transposição do Rio São Francisco em símbolo de sua própria biografia, como se os canteiros de obras, os trilhos dos dutos e os túneis escavados não fossem pagos com recursos públicos, mas esculpidos por suas próprias mãos suadas de nordestino batalhador. E se alguém se atrever a lembrar que as obras começaram no governo anterior — e que se arrastam por décadas —, será chamado de golpista, reacionário, elitista ou simplesmente ignorado pelo marketing oficial.
Evidente que não poderia faltar o alvo favorito: Jair Bolsonaro. Como de costume, Lula disparou ataques ao ex-presidente, tentando associar-se à figura de Getúlio, enquanto cola em Bolsonaro o estigma do abandono social. A ironia é que muitas das medidas de Bolsonaro — como o Auxílio Brasil, por exemplo — tiveram impacto direto na renda das famílias mais pobres. Mas Lula, com sua narrativa afinada e seu domínio da retórica, reescreve a história com a tranquilidade de quem sabe que grande parte da imprensa aplaude de pé.
Aliás, vale lembrar: a transposição foi iniciada oficialmente em 2007, no governo Lula, mas só teve trechos finalizados no governo Dilma Rousseff e, vejam só, também no governo de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Mas por que dar crédito a outros quando se pode centralizar a glória?
O discurso místico e fantasioso proferido no sertão é mais do que populismo — é um insulto à inteligência dos brasileiros. É transformar séculos de abandono em roteiro messiânico de salvação política. É chamar de “obra divina” o que deveria ser obrigação administrativa. É fazer da pobreza um instrumento de marketing, onde o palanque vira altar e a plateia vira rebanho.
A grande verdade é que Lula depende do Nordeste como a plantação depende da chuva — não por amor ao povo, mas por necessidade eleitoral. O semiárido sempre foi terreno fértil para discursos emocionais e políticas assistencialistas. E enquanto a água for vendida como milagre, haverá espaço para palhaços travestidos de profetas.
A imprensa alternativa, que não se curva aos encantos do lulopetismo, precisa continuar fazendo o trabalho que muitos veículos tradicionais abandonaram: confrontar o teatro com os fatos, a mitologia com os números, o culto à personalidade com a realidade nua e crua do Brasil profundo. Porque, por trás do sorriso do “pai dos pobres”, há um projeto de poder que se alimenta da dependência — quanto mais o povo precisa do Estado, mais fácil é manipulá-lo.
A jornalista Camila Abrão, da Gazeta do Povo, merece reconhecimento pela coragem de noticiar com precisão e sobriedade esse verdadeiro delírio presidencial. Em tempos de narrativas manipuladas, o jornalismo que não lambe botas se torna ainda mais essencial.
No fim das contas, Lula quer que acreditemos que Deus deixou o sertão seco para que ele brilhasse. Eu, sinceramente, prefiro acreditar que Deus está olhando tudo isso com lágrimas nos olhos — não de alegria, mas de profunda tristeza por ver Seu nome usado em vão para justificar megalomania, manipulação e promessas vãs.
E se o sertão um dia florescer, que não seja por causa de um político qualquer, mas porque o povo nordestino — trabalhador, resiliente e digno — decidiu que merece mais do que esmolas travestidas de bênçãos, discursos recheados de ego e um país comandado por mitômanos com vocação para mártir.
Porque o povo pode até estar com sede, mas não é burro. E já passou da hora de perceber que, enquanto Lula se coloca como o escolhido, o Brasil continua sendo o abandonado.
Com informações Gazeta do Povo