
Você pode até achar que o que acontece lá na África Ocidental, em um país como Gana, não tem nada a ver com a sua vida. Mas eu te peço um minuto de atenção — e de reflexão. Porque se você olhar com cuidado, vai perceber que o que está em jogo lá é justamente o que, aqui, muitos tentam naturalizar em silêncio: o desmonte institucional, o aparelhamento do Judiciário e a desfaçatez de um poder executivo que se julga acima da lei.
Os jornalistas Thomas Naadi e Natasha Booty, da BBC News, publicaram um artigo que você precisa conhecer. Nele, eles relatam uma cena que, se não fosse trágica, pareceria roteiro de série sobre autoritarismo: o presidente de Gana, John Mahama, decidiu suspender a chefe da Justiça do país, Gertrude Torkornoo, com base em alegações não divulgadas — e sem qualquer processo transparente. A primeira vez que isso acontece na história de Gana. Você entendeu bem: o presidente acordou, disse que recebeu umas cartas e decidiu afastar a juíza mais alta do país. Sem aviso, sem julgamento, sem prova.
O povo foi às ruas. Centenas, vestidos de vermelho e preto — as cores do luto — marcharam em Accra, capital ganesa, com cartazes que diziam “Parem de silenciar o Judiciário”. O principal partido de oposição, o Novo Partido Patriótico (NPP), que nomeou Torkornoo quando estava no poder, liderou o protesto. Mas não estavam sozinhos. Outras três forças políticas menores também se uniram. O que uniu todos? A recusa em aceitar um governo que se julga dono da Constituição.
E aí eu te pergunto: não soa familiar?
Quantas vezes você já viu aqui no Brasil a velha narrativa de que “o povo está com o presidente”? Quantas vezes já te venderam a ideia de que o chefe do Executivo é uma figura quase mística, acima de qualquer questionamento, capaz de decidir o que é certo e o que é errado com base em “convicções” e não em fatos?
Pois é. Em Gana, o povo viu isso cedo — e foi pra rua. E aqui?
A suspensão da juíza Torkornoo foi recebida com repúdio pela Ordem dos Advogados de Gana, equivalente à nossa OAB. Os especialistas disseram, com todas as letras, que o ato foi inconstitucional. Que o presidente agiu de forma arbitrária. Mas, como sempre, há os que aplaudem. Inclusive advogados, claro. Afinal, sempre haverá quem defenda o poder pelo poder. E você, vai fazer parte desse coro ou vai abrir os olhos?
A chefe da Justiça de Gana, vale lembrar, é a terceira mulher na história a ocupar esse posto. Uma mulher negra, firme, conhecida por não se dobrar às pressões políticas. E é justamente por isso que virou alvo. Desde que Mahama voltou ao poder, sua equipe — que representa o Congresso Nacional Democrático — passou a questionar todas as decisões da juíza em casos de corrupção e abuso de poder envolvendo o partido do governo. Coincidência? Só se você ainda acredita em Papai Noel.
Segundo o presidente, três pessoas enviaram petições com alegações contra ela. Mas ninguém sabe o conteúdo das acusações. E mesmo assim, ela foi afastada antes mesmo de ser ouvida. Olha que coisa curiosa: até um estagiário numa empresa tem direito a uma conversa com o RH antes de ser demitido. Mas uma chefe de Justiça pode ser afastada sem nem saber do que está sendo acusada. É ou não é escandaloso?
E se você acha que isso só acontece em Gana, pense de novo.
No Brasil, você já viu ministros do STF sendo pressionados, atacados, expostos nas redes, com dossiês, vídeos fora de contexto, ataques orquestrados. E agora, a moda é usar “Comissões Parlamentares” para caçar reputações. Está cada vez mais evidente: a Justiça virou alvo preferencial de quem não aceita limites.
Um manifestante ganês, Charles Oteng, falou algo que me fez parar e reler duas vezes. Ele disse: “Sim, o presidente tem todo o poder, mas a forma como ele ataca nosso Judiciário é alarmante — e nós, os jovens, não vamos assistir calados.” Você consegue imaginar um jovem brasileiro dizendo isso com o mesmo fervor? Ou já fomos domesticados pelo TikTok, pela novela das oito e pelo futebol?
O recado está dado. Quando o Executivo invade o espaço da Justiça, o que vem a seguir é o colapso institucional. Hoje é um juiz, amanhã é o Parlamento, depois são os jornais, depois é você. E ninguém virá te defender, porque todos os que poderiam fazer isso já foram calados antes.
É claro que há quem diga: “Mas se a juíza errou, tem que responder.” Concordo! Mas há formas de fazer isso. A própria Constituição de Gana — e a nossa também — prevê o devido processo legal. Isso significa investigação, defesa, provas, julgamento imparcial. O que não se pode aceitar é denúncia anônima, procedimento secreto e decisão unilateral. Isso é coisa de ditadura, não de democracia.
E olha só, ironia das ironias: a Constituição de Gana permite ao presidente suspender ou até demitir o chefe da Justiça… desde que com base em provas e após um processo legal. Exatamente o que foi ignorado. Ou seja, até quando há base legal, ela precisa ser respeitada. Lei não é buffet: você não escolhe o que quer cumprir.
Sabe o que mais me assusta nessa história? É o silêncio internacional. A ONU não falou nada. A União Africana, idem. A imprensa global menciona o caso de forma burocrática. E aqui no Brasil? Nem um pio. Cadê os defensores da democracia, os colunistas indignados, os juristas de plantão?
Quando é um presidente conservador que confronta o sistema, fazem plantão em porta de tribunal. Mas quando é um presidente progressista, como Mahama, ninguém quer incomodar. Afinal, ele é “do bem”. Ele está “combatendo a corrupção”. É sempre essa desculpa, não é? Quando a esquerda quer destruir instituições, ela faz isso “em nome da democracia”. Quando a direita tenta reequilibrar os poderes, é “golpe”.
Você está percebendo o padrão?
O caso de Gana é mais do que um episódio isolado. É um espelho. Um alerta. Uma fotografia do que nos espera se continuarmos normalizando a centralização de poder nas mãos de um só homem. Se aceitarmos calados que o chefe do Executivo vire também juiz, promotor, policial e dono da verdade.
E você precisa escolher de que lado está. O lado de quem acredita que a Constituição está acima de qualquer presidente, ou o lado de quem acha que, se o “nosso” lado está no poder, então vale tudo — até pisotear o Estado de Direito.
Se você é conservador, sabe bem: não existe liberdade sem responsabilidade, nem ordem sem limites ao poder. Acreditamos em instituições fortes, em freios e contrapesos, na separação entre os Poderes. Sem isso, viramos uma república das bananas — ou, como está se tornando Gana, uma ditadura com verniz democrático.
Não se engane. O que aconteceu lá pode acontecer aqui. E se você acha que não, é porque já começou a aceitar o inaceitável. Que essa história sirva como um chamado. Não para defender a juíza ganesa, que talvez nem saiba da nossa existência. Mas para defender a ideia de justiça, a integridade institucional, e o futuro da liberdade.
Com informações BBC