
No Brasil, a palavra “mudança” tem sido sistematicamente sequestrada pelo cartel partidário. E agora, finalmente, uma centelha de esperança se apresenta diante do Supremo Tribunal Federal (STF), com o julgamento histórico sobre a viabilidade das candidaturas avulsas — aquelas que permitem a qualquer cidadão concorrer a cargos eletivos sem estar submisso ao jugo de um partido político. A jornalista Aline Rechmann, da Gazeta do Povo, expôs de forma clara os desdobramentos e as raízes desse julgamento que poderá redefinir a democracia brasileira como a conhecemos.
Hoje, no Brasil, a candidatura a qualquer cargo público só é permitida a quem esteja atrelado a um partido político. Ou seja: ou você se submete às vontades e caprichos dos caciques partidários, ou você está fora do jogo. Não importa seu preparo, sua representatividade ou seu histórico de luta — sem o selo do partido, você é um invisível político. Isso não apenas viola o espírito da representatividade como também perpetua uma estrutura oligárquica que serve aos interesses de poucos, em detrimento do povo.
A ação que provocou o julgamento no STF foi proposta por Rodrigo Mezzomo, político que teve sua candidatura à prefeitura do Rio de Janeiro negada em 2016 por não ter o apoio de um partido. Mezzomo invocou a Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada pelo Brasil, que não impõe a exigência de filiação partidária para o exercício do direito de ser votado. É uma interpretação simples, direta e, sobretudo, democrática. Afinal, a cidadania não pode depender da chancela de corporações políticas.
Mas por que tanto medo das candidaturas avulsas?
Porque elas ameaçam o monopólio da representação política. Elas colocam em xeque o poder de chantagem das direções partidárias, que hoje barganham cargos, verbas e influência em troca de apoio. Como bem pontuou o Ranking dos Políticos, trata-se de um passo essencial para quebrar o monopólio dos caciques partidários, abrir espaço para vozes autênticas da sociedade civil e promover uma verdadeira renovação política. Isso é o que mais assusta os donos do poder.
É por isso que nomes como Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) e Ricardo Salles (Novo-SP) defendem com clareza e coragem as candidaturas independentes. Orleans e Bragança foi direto ao ponto: “O direito de ser eleito é fundamental, não cabe a partidos decidir quem pode ou não se candidatar.” Essa é a essência da democracia: o povo, e somente o povo, decide quem deve ou não ocupar um cargo público. Não os partidos. Não os conchavos.
Os que se opõem à proposta, como o cientista político Paulo Kramer, argumentam que candidaturas independentes aumentariam o “personalismo” e dificultariam a governabilidade. Um raciocínio, no mínimo, curioso. Hoje já vivemos em um sistema onde alianças são feitas por puro fisiologismo e os partidos são meras siglas de aluguel. Governabilidade baseada em loteamento de cargos é tudo, menos eficiente. Será mesmo que a alternativa ao atual caos é continuar exatamente como estamos?
Aliás, seria cômico — se não fosse trágico — pensar que alguém defende a “representatividade” dos partidos brasileiros, conhecidos por ignorar as bases e impor candidaturas por critérios de conveniência pessoal ou apoio financeiro. Os partidos, hoje, representam a si mesmos e seus dirigentes. O povo é apenas um detalhe no estatuto.
E quando se olha para a história recente, os exemplos se acumulam. O ex-ministro Ricardo Salles, que quis concorrer à prefeitura de São Paulo, foi impedido porque seu antigo partido, o PL, preferiu apoiar a reeleição de Ricardo Nunes (MDB). E o que isso demonstra? Que mesmo lideranças com capital político e popularidade não podem disputar uma eleição se não tiverem o “sim” do partido.
O desembargador aposentado Sebastião Coelho, hoje filiado ao Novo, também teve de se curvar a essa regra. O mesmo se aplica ao empresário Pablo Marçal, que viu sua candidatura à presidência barrada em 2022 por um capricho do Pros. Todos esses são exemplos de brasileiros que, em nome da democracia, foram proibidos de participar da democracia. Parece piada, mas é apenas o Brasil sendo Brasil.
A resistência à mudança vem de todos os lados. A Procuradoria-Geral da República, por meio de Paulo Gonet, emitiu parecer contrário à proposta, alegando que a exigência de filiação partidária é válida e não fere direitos fundamentais. Alegam que há “proporcionalidade” na regra. Mas proporcional a quê? À manutenção do poder concentrado nas mãos de poucos? À perpetuação da mediocridade institucionalizada?
A verdade é que mais de 90% dos países democráticos do mundo permitem candidaturas independentes. Estados Unidos, Itália, Canadá, Espanha e Portugal são apenas alguns dos exemplos citados pela campanha “Exija o Direito às Candidaturas Independentes!”, liderada pelo Ranking dos Políticos. Em nenhum desses países, a democracia sofreu um colapso por causa da participação de independentes. Muito pelo contrário: ela foi enriquecida, arejada, revitalizada.
Nosso sistema político é um cemitério de ideias novas. Para que alguém consiga se eleger, precisa antes passar pelo crivo de convenções partidárias viciadas, disputar espaço com figurões e, muitas vezes, aceitar acordos espúrios. Com as candidaturas avulsas, o eleitor poderá avaliar o indivíduo, e não apenas o número da legenda. O debate deixará de ser sobre interesses de coligações e voltará a ser sobre propostas reais.
Os que alegam que isso dificultaria a articulação política no Legislativo ignoram o fato de que essa articulação já é dificultada pela pulverização partidária e pela lógica dos “blocos” improvisados em nome de emendas e ministérios. A diferença é que, com independentes, ao menos teremos pessoas que se colocam diante do povo com suas próprias ideias — e não como marionetes de diretórios partidários.
Outro ponto importante: as candidaturas avulsas já existiram no Brasil, e não causaram nenhum colapso institucional. Durante o Império e a Primeira República, não era exigida filiação partidária para disputar eleições. A proibição só veio com a Constituição de 1934, e foi reforçada no período militar e depois pela Constituição de 1988. Ou seja: não é uma inovação perigosa — é um retorno a uma forma legítima de representação popular.
É claro que essa mudança não resolverá todos os problemas da nossa política. Mas abrirá uma nova via para cidadãos comuns — médicos, professores, empreendedores, líderes comunitários — que querem servir ao país sem se submeter à lógica corrompida dos partidos. O que está em jogo não é apenas uma regra eleitoral, mas o futuro da democracia brasileira.
O julgamento que se inicia no STF sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, e que terá repercussão geral, pode ser um divisor de águas. Barroso, que já sinalizou em 2017 a importância de discutir se a exigência de filiação partidária contraria o Pacto de San José da Costa Rica, tem agora a chance de colocar o Brasil entre as nações que respeitam plenamente o direito de seus cidadãos de votar e serem votados.
Se o STF tiver coragem de reconhecer esse direito, o Brasil finalmente poderá romper com a lógica das listas fechadas, das candidaturas impostas de cima para baixo e da dependência estrutural dos partidos políticos. Teremos, enfim, um sistema onde o cidadão estará acima das siglas, e não o contrário.
E se há algo que a elite política teme mais do que tudo, é justamente um povo livre para escolher sem precisar da bênção dos partidos. Porque, no fim das contas, o que está em julgamento não é apenas o direito de Rodrigo Mezzomo ou de Ricardo Salles. É o nosso direito, como brasileiros, de sermos os verdadeiros donos da democracia.
Com informações Gazeta do Povo