
Imagine você, leitor conservador e lúcido, vivendo num país onde um ministro da mais alta Corte se comporta como dono do tribunal, do processo, do réu, da testemunha, do advogado, da gramática, da ética, da lógica e — claro — da paciência de qualquer brasileiro minimamente consciente. Pois bem, seja bem-vindo ao espetáculo burlesco do Supremo Tribunal Federal, estrelado por Alexandre de Moraes, o homem que confundiu toga com trono e julgamento com interrogatório militar.
A cena é digna de um roteiro distópico: um general do Exército, Freire Gomes, prestando depoimento como testemunha de defesa, é publicamente admoestado por Sua Excelência da Suprema Intolerância porque, pasme, mudou de opinião. Ah, o horror, o ultraje! Porque, no Brasil de Moraes, a verdade não é o que você diz agora — é o que você disse antes, na Polícia Federal, pressionado, ameaçado e com a espada da prisão preventiva eternizada sobre o pescoço.
É preciso ter coragem — ou total desprezo pelo Estado de Direito — para mandar um general pensar bem antes de responder, como se estivesse diante de um interrogador da KGB, não de um juiz constitucional. “Se mentiu na polícia, tem que dizer que mentiu na polícia”, disse Moraes, o inquisidor-mor da República. A lógica aqui é simples e absolutamente perversa: o depoente tem o dever de dizer a mesma coisa duas vezes, independentemente das circunstâncias, ou será acusado de falso testemunho — artigo 342 na cara!
O problema é que o jogo é sujo, e a regra é muda. Não se trata de buscar a verdade, mas de manter a narrativa em pé, mesmo que aos trancos, sob gritos e ameaças. Ora, se o depoimento do general agora não serve, por que o ouvir de novo? Por que não apenas ler os autos da Polícia Federal e concluir o processo num despacho burocrático? Por que fingir que há um julgamento, se o juiz já decidiu qual versão quer ouvir? Afinal, o STF não julga — ele escolhe o roteiro e distribui os papéis. E se o ator improvisar, vai preso por desacato.
Mas o circo não para por aí. Em outro ato tragicômico, foi a vez do advogado de defesa de Anderson Torres, aquele que ousou, em plena sessão, pedir — veja só! — o mesmo tratamento dado à acusação. Sacrilégio! Ousadia inaceitável! O doutor advogado se esqueceu de que, no tribunal de Alexandre de Moraes, não existe paridade de armas — existe hierarquia de humilhação.
Ao tentar exercer sua função, o advogado foi imediatamente silenciado, interrompido e tratado como aluno malcriado: “Doutor, doutor, doutor, nós não estamos aqui para fazer circo. Eu não vou permitir que Vossa Senhoria faça circo no meu tribunal.” Não é preciso muito para perceber que o circo já está armado, e quem está no picadeiro é o próprio ministro, rindo do processo penal enquanto finge ser juiz.
E que dizer da aula de língua portuguesa ao ex-ministro Aldo Rebelo, convocado como testemunha do almirante Garnier? Rebelo ousou, veja você, interpretar a expressão “estar à disposição” em sentido não literal. Inaceitável! Moraes, do alto da sua autoridade gramatical, o interrompeu como um fiscal da Academia Brasileira de Letras com surtos de autoritarismo: “Se o senhor não se comportar, o senhor vai ser preso por desacato!”
Ah, que maravilha. O ministro relator decide o que é verdade, o que é mentira, como deve ser interpretada uma expressão idiomática e, por que não, o que é uma resposta aceitável ou não. “Sim ou não?” — esbravejou ao testemunho do ex-ministro da Defesa, como se estivesse em um interrogatório sumário em regime de exceção. Ora, ministro, a vida não é um questionário de múltipla escolha, especialmente quando o tema envolve uma suposta “trama golpista” com mais nós do que um bordado mal feito.
Mas o mais saboroso — para quem aprecia o humor negro da política brasileira — foi a liberação dos vídeos apenas depois de encerradas todas as oitivas. É como se o STF dissesse: “Você tem o direito de saber o que aconteceu… depois que já não puder fazer nada a respeito.” Transparência seletiva, sempre no timing conveniente da narrativa institucional.
A pergunta que ecoa entre os comentaristas da Revista Oeste e os canais de política no YouTube é a mesma que ressoa em lares indignados do Brasil inteiro: isso é Justiça ou é tirania performática? Porque quando o juiz se comporta como promotor, carcereiro, censor e ainda detém o monopólio da interpretação literal da língua portuguesa, o que resta é o deserto da imparcialidade.
Aliás, é curioso — ou trágico — que ninguém, absolutamente ninguém, das “instituições sólidas” tenha se levantado contra esse show de horrores jurídicos. A OAB? Calada. O Ministério Público? Submisso. A imprensa tradicional? Batendo palmas, claro, porque desde que o inimigo seja um conservador ou um militar, vale tudo — inclusive abolir garantias fundamentais.
É importante frisar que a postura de Alexandre de Moraes não é um caso isolado, um excesso pontual, um descontrole momentâneo. É o retrato de um modelo de poder que se consolidou no Brasil: o da autoridade sem freios, sem contraponto, sem vergonha. O STF, que deveria ser o guardião da Constituição, tornou-se seu carcereiro, usando os artigos da lei como grilhões ao invés de escudo.
E para os que ainda ousam dizer que há exagero, que há crítica demais, que o ministro está apenas “cumprindo seu papel” — deixem-me rir em tom fúnebre. Quando um juiz manda calar o advogado, grita com testemunha, ameaça prender quem discorda da sua semântica e exige fidelidade a depoimentos anteriores como dogmas inquestionáveis, isso tem nome: autoritarismo judicial. E dos mais grotescos.
Ah, mas calma! Isso tudo só está acontecendo porque estamos investigando uma “tentativa de golpe de Estado”, não é mesmo? “Golpe”, aliás, é a palavra mágica que justifica qualquer atropelo, qualquer abuso, qualquer censura. Basta pronunciá-la em tom grave, de preferência com a testa franzida e o dedo em riste, e pronto: você pode rasgar a Constituição ao vivo que ainda vai sair ovacionado nos editoriais da Folha e do Globo.
No final das contas, o que está em jogo aqui não é apenas a liberdade de meia dúzia de generais, ministros ou assessores. É a sobrevivência da própria noção de Justiça num país onde o Judiciário resolveu que a Constituição é um detalhe interpretativo — e onde quem discorda vira réu, e quem pergunta demais perde o som do microfone.
Mas não se preocupe, leitor, tudo está sob controle — desde que você não pense por conta própria, não critique os deuses togados e repita, em uníssono com a manada, que está tudo certo. O espetáculo precisa continuar, afinal.
E como em toda peça de teatro de má qualidade, o público cansado já conhece o final, mas permanece assistindo só para ver até onde vai a decadência. Porque rir, nesse cenário, é o último resquício de sanidade que nos resta.
Se você achou este texto duro demais, é sinal de que ainda acredita na Justiça como instituição. Se você achou que foi pouco, é porque sabe — assim como nós — que o buraco do autoritarismo no Brasil é muito mais fundo. E tem toga, não farda.
Compartilhe, questione, e jamais aceite que a liberdade seja condicionada ao humor de um ministro. Afinal, ou a Constituição vale para todos, ou não vale para ninguém.